segunda-feira, 31 de maio de 2010

Cálice

Para mim uma das melhores letras de Buarque:

Recordar para viver.

E como o meu ego hoje está enorme não resisto a publicar outro texto de outra grande amiga sobre mim:

Ao B.A
No cume da montanha onde te vejo tens as mãos atadas sobre o peito.
Tens livros espalhados pelo chão e palavras a cairem aos teus pés.
E uma fotografia do teu amor...
A garrafa de vinho está a meio e os cigarros queimam devagar...
Tens uma cortina de pestanas a esconder o quarto desarrumado dos teus olhos,
E cantas...
O teu coração, sinto-o a bater tão depressa...
Pum pum, pum pum...
Sabias que ele bate ao compasso do teu viver?
Sei que tantas vezes quiseste descer daí até ao vale.
Sei que tantas vezes te apeteceu escorregar, cambalear, cair aos trambolhões...
E daqui em baixo onde estou, olho para ti com um carinho infindável
E grito-te com o coração:
"Deixa-me subir até aí. Quando chegar damos as mãos e rebolamos a rir os dois..."

Recordar para viver.

E assim de repente encontrei este texto para mim de uma grande amiga que está prestes a embarcar numa grande aventura e como sou um vaidoso vou publicá-lo aqui:

Hoje é para ti Bruno Amaral.
Publico o texto que te escrevi
momentos antes de partires da
nossa cidade.

Para que saibas o que te entreguei.
Para que saibas como confio em ti.
E no nosso amor.


A ti?
A ti, dou-te as minhas pernas
o meu andar, a energia que pauta a minha vida, o impulso…
Aprendi ao teu lado que
para sermos realmente bons naquilo que fazemos,
temos que saber porque andamos
e onde queremos chegar,
estar num caminho porque é o nosso,
porque o escolhemos,
porque o pensámos…
Andarei sempre ao sabor do vento,
mas percebi contigo a importância de dar passos firmes,
de estabelecer prioridades,
de assumir o que quero…
Obrigada meu amor…


Agora que já passaram alguns meses
pedem-me cada vez mais passos firmes e seguros.
Pedem-me coragem.
Sinto-te tantas vezes a empurrar-me.
Desconfio até,que às vezes
quando ninguém está a ver
(a tua generosidade e o teu cuidado são sempre discretos)
me pegas ao colo, para me provar
que nada é assim tão alto
ou longe.
E eu acredito.
Porque quando estás comigo.
Nada parece assim tão alto
ou longe.
Sim,meu amigo.
Tens cuidado muito bem das minhas pernas.
Tens cuidado muito bem do meu andar.

Manifestação e Tertúlia

A grande manifestação de sábado foi importante por variadíssimas razões, mas pessoalmente o que mais gostei foi de encontrar caras de outras tempos, umas com quem me dava melhor outras pior. Revê-los ali, perguntar-lhes pelos filhos e pelo trabalho, faz-me ter a certeza daquilo que em que eu já acreditava a Universidade de Coimbra não é uma fábrica de académicos, mas sim um espaço onde se ganha a consciência da cidadania e da participação e isso fica para sempre. As tertúlias dos antigos estudantes que às 5as se têm vindo a juntar, sobre um pretexto de um jantar e saudades, é gente que se preocupa e quer discutir o país, é gente que entende que sem extremos não há evolução por isso senta-se a esquerda e a direita com os indecisos e fala-se e discute-se muito, uns indignam-se outros desvalorizam, mas todos querem um Portugal melhor.

Sim...

fujo das emoções, dos sentimentos, das grandes euforias e dos grandes dramas como o diabo foge da cruz o que não quer dizer que não as sinta.

Mulheres que admiro - Helena Roseta


Admiro Helena Roseta pelo seu percurso coerente, pela sua não formatação política, pela frontalidade e lealdade com que se empenha nos seus ideais e acima de tudo por uma visão pouco partidária e mais cívica da política, os partidos vão oscilando nas suas ideologias, Helena Roseta manteve a sua.

Nurse Jackie - Recomendo

Chanson du Jour

Existe sempre um certo orgulho...

Vale mesmo a pena ler este artigo do New York Times e esboçar um sorriso.

O prazer de fumar, Vasco Pulido Valente

Viver sem fumar é como escrever sem pontuação. Pelo menos, para mim. A pequena cerimónia de acender um cigarro marca um “tempo”:o princípio do dia, o princípio do trabalho, cada intervalo ou cada distracção, o alívio (ou o prazer) de acabar qualquer coisa, o almoço (quando almoço), o jantar (quando janto), o fim do dia, antes de fechar a luz, como um ponto parágrafo. O cigarro divide, acentua, encoraja, consola. Abre e fecha. É uma estação e uma recapitulação. “Já cheguei aqui. Falta ainda isto, isto e aquilo”. Nas poucas vezes que tentei não fumar, tinha um sentimento de desordem, de arbitrariedade, de não saber passar de um frase a outra ou de um capítulo ao capítulo seguinte. Os fumadores, se repararem bem, não fumam ao acaso; fumam com ritmo.
O cigarro também é uma companhia. Sobretudo para quem trabalha sozinho. A maior parte das pessoas vai falando, pouco ou muito, durante o trabalho. Por necessidade ou por gozo próprio. Do “serviço” à intriga, há milhares de oportunidades para o grande e simpático exercício de conhecer o próximo: para gostar dele ou para o detestar, para o observar, o comentar ou o intrigar. De porta fechada, à frente de um computador ou de um livro, não há nada à volta. Aí o cigarro ajuda. É um fiel amigo: a pausa que torna o resto tolerável. E que, além disso, recompensa uma boa ideia ou manifesta o entusiasmo ou a execração pelo que se leu. Com quem se pode conversar senão com o cigarro? De certa maneira, o cigarro substitui a humanidade; e não me obriguem a fazer analogias. Mas, principalmente, fumar serve para pensar. Quando, a ler ou a escrever, paro a meio de uma página, porque me perdi num argumento ou não consigo imaginar como se continua, pego num cigarro e penso. Não me levanto, não me agito, não abro a boca, não me distraio. Fumo e procuro com paciência a asneira. O cigarro concentra e acalma. Restabelece, por assim dizer, a normalidade.
E este efeito “normalizador” é com certeza uma das suas maiores virtudes. Não comecei a fumar para ser adulto ou “viril”. Comecei a fumar porque sou horrorosamente tímido e porque o cigarro é com certeza a maior defesa dos tímidos. Primeiro, porque ocupa as mãos e simula um arzinho de à-vontade. E, segundo, porque esconde e protege ou cria a ilusão de que esconde e protege. Por detrás de um cigarro, o mundo parece mais seguro. Mesmo se andam por aí a garantir que não.

Sectarismo

Em abono da informação clara era bom sabermos nome dos representantes das associações(ão?)LGBT que vão reunir com Sócrates. Uma coisa é reunir com representantes de todas as associações e na sua diversidade de tendências outra é reunir com alguns membros do grupo parlamentar do PS e de satélites em volta dele.

Os profetas.

Acho que esta notícia afasta todos profetas de uma esquerda da desgraça que em crónica anunciavam com um mórbido contentamento a derrota de Alegre e apregoavam a vitória de Cavaco que afinal parece que vai ter concorrência. Os mesmos que preferiam culpar Alegre por uma eventual derrota de Cavaco, quando os grandes culpados dessa muito pouco crível vitória serão os tais profetas dessa tal esquerda que preferem as cantigas de escárnio e mal dizer ao discurso da construção e mobilização, tão novos e já tão velhos e já não vivem só no Restelo. O gozo que me dá ler esses precipitados escritos é pelo embate que posteriormente têm com a realidade.

Hoje sinto-me assim...

domingo, 30 de maio de 2010

sábado, 29 de maio de 2010

Imagem do dia

Chanson du Jour

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Discours des autres

"E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ...ser meu para sempre." Miguel Sousa Tavares

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Chanson du Jour

Manuel Alegre

Manuel Alegre representa aquilo que os paladinos de uma certa esquerda empírica querem esquecer: ideologia.
A candidatura de Manuel Alegre é a única oportunidade de vencer Cavaco Silva e impedir o velho sonho da direita de um Presidente e um Primeiro Ministro, como se isto não bastasse, a um cidadão que se diz de esquerda, é ainda a hipótese de fazer com que Portugal volte a acreditar e a re-construir-se,enquanto povo interventivo e que olha o horizonte.
Acreditar que é possível fazer uma campanha com ideias de homens e mulheres que nada desejam para si, mas que acreditam que com o seu trabalho voluntário, podem mudar o rumo de uma viciada (ins)establidade política, instalada, e construir uma alternativa de esperança.
Acreditar na renovação política sem deixar caír o socialismo democrático, zarpando numa esquerda onde deve estar bem vincada a criatividade e imaginação social, fomentando um diàlogo real e moderno com todos os cidadãos.
Acreditar, como ele próprio diz, existir uma:«Hora de responsabilidade, de verdade e de solidariedade. Hora, também, para, no quadro das dificuldades existentes, tudo fazer para preservar o Estado Social. O país tem de ser mobilizado. Mas só o será se compreender o sentido das medidas e dos sacrifícios que lhe são pedidos. E por isso, além de rigor e austeridade, é necessária uma grande exigência ética. Contra os predadores do mercado, a única resposta tem de ser a mobilização geral para uma estratégia de crescimento económico. Sem abdicar do papel do Estado, quer no investimento público susceptível de estimular a economia e o emprego, quer no combate às desigualdades salariais e na adopção de políticas de uma mais justa redistribuição de rendimentos».
Acreditar na figura de um Presidente que não se quer afirmar como alternativa de governo assente num gestão política-empresarial, para não dizer industrial, mas sim afirmar-se com uma atitude, com um pensamento, com uma visão de Portugal e do mundo num candidatura que sendo suprapartidária não é neutra.
Acreditar que é possível resgatar um Portugal de velhos do Restelo (alguns deles jovem), que críticam, agoiram, amarram, dificultam, impedem sem alternativa que o nosso país volte a ser a vanguarda e a modernidade capaz de partir para novos sonhos e para novas descobertas.
Votar Manuel Alegre será um acto de consciência e de responsabilidade, será um voto contra o conformismo, um voto pela ideologia franca e não de conveniência, um voto em quem lutou pela democracia e igualdade sem nunca hesitar, será um voto num futuro garantidamente melhor.

Mad Men - Getting better and better

terça-feira, 25 de maio de 2010

Irena Sendler

A luta!

Chanson du Jour

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Chanson du Jour...

Esta música vai lembrar-me sempre de mim da minha prima Mimi e Francisca a fugirmos do aniversário da minha prima Fifi, onde estava toda a família, num mercedes muito velho, que tinha duas buzinas e poucos travões, para irmos fumar e que bem soube não fosse o mercedes ter ficado atolado.

Gosto tanto deste poema...

Apetece-me andar ás voltas
Pela cidade
Quando a cidade estiver deserta
Por cima dos despojos da guerra
E no meio dessa massa que nos erecta
A cidade está ainda mais deserta
Desistiram de guiar as marionetas persistentes
As marionetas persistentes
Já chega aviso, controlador
Dos milhentos fins há sempre uma história para contar

Sobreviventes da repescagem
Os indecisos entrou fugaz e eu eterno
É os que me lembram da fuga á cidade
E me tiram do aconchego do inferno
A cidade está ainda mais deserta
Desistiram de guiar as marionetas persistentes
As marionetas persistentes

A cidade está ainda mais deserta, ainda mais coberta e
menos erecta
Já chega aviso controlador
Dos milhentos fins há sempre uma história para contar, Boitezuleika

Hoeje era capaz...

de fazer o que me apetece!

I fucking hate monday mornings and mornings at all!

Acordo com a merda do despertador a exigir-me que seja responsável e que me levante. Detesto moralistas. Levanto-me ainda perdido e estremunhado com tal selvajaria e encaminho-me para a casa de banho. Chego lá com alguns hematomas fruto do enxerto de porrada que a mobília me decidiu dar. Ligo o rádio que deveria estar sintonizado na marginal a única rádio aceitável para se ouvir de madrugada (são 8h30min.), mas não está. Apanho com uma senhora, que pela boa disposição e riso descontrolado me leva a desconfiar da sua sanidade, que insiste para lhe ligar e dar a minha opinião sobre o concerto dos Trovante que não vi. Ainda não consigo abrir os olhos quanto mais emitir uma opinião. Mudo de estação e sintonizo com alguma dificuldade a rádio Marginal. Assim que ponho um pé banheira, pimba, interferência, e passo de uma música matinalmente aceitável para um ruído que fará explodir o meu frágil cérebro numa pasta cinzenta. Retiro o pé da banheira e volta a música, ponho o pé regressa o ruído. Chateado com esta dança decidi cortar o mal pela raíz e desligar a telefonia. Agora já todo na banheira e com água a começar a escorrer-me pelo corpo, lembro-me que deveria ter ajustado a temperatura no esquentador, a que ontem baixei a temperatura para lavar a loiça, já não consigo voltar a sair para regular o animal supostamente inteligente, sujeitando-me a uma água tépida, quando a única coisa que me deixa feliz a estas bárbaras horas é água bem quente em cima de mim. Acabada a higiene geral começo a secar-me com uma toalha húmida, que mais uma vez por esquecimento, não pus a secar ontem à noite. Em vez de me sentir seco, sinto-me lambido. Desodorizante. Pentear o cabelo que insiste numa permanente revolta apesar de ser cada vez menos, assim mais ou menos como a FER. Perfume. Cuecas. Meias. Calças. E estou sem camisas passadas. Páro e reflicto nas opções: uma de manga curta com florzinhas, muito gira mas era preciso ser um gajo cheio coragem para ir passear as florzinhas com um fato para o escritório, e eu não sou, uma beije mas de um tecido que eu não sei o nome, mas que se usava muito nos anos 70, ou uma azul que não era minha e onde, apesar de tudo, cabem dois de mim? Opto pela azul debaixo do blazer acho que ninguém nota. Já cansado com tanta decisão vou buscar os sapatos que precisavam de uma boa engraxadela, mas já não consigo. Pego num spray onde leio, na vertical como o Prof. Marcelo, impermeabiliza, reveste e película parece-me num acesso que aquelas três palavras ressuscitarão os meus sapatos. Pareceu-me mal. De castanhos os sapatos passam a preto. Resigno-me. Pego na mala, óculos de sol e carteira encho-me de coragem e saio. Cá fora caio logo na emboscada do meu arqui-inimigo das manhãs, o sol, e tal qual a kriptonite sinto os meus poderes a desvanecerem-se. Chego ao café da esquina onde me junto aos outros vampiros e sugo com muita vontade a minha bica. Saio e começo a andar para o trabalho, mas já estou atrasado e exausto, olho e vejo o meu único consolo das manhãs. Um táxi.

Sagração da Primavera

sábado, 22 de maio de 2010

Good answer!

Não sei quem é o "me" mas respondeu de forma muito sustentada e pertinente ao apontamento demagógico do Nuno Ramos de Almeida. Aqui fica a resposta:
Comentário de /me
Data: 22 de Maio de 2010, 14:19

Quando andava na escola, pouco se falava em “gays”. Havia as piadolas, o chamar paneleiro a este ou aquele, mas a brincar a brincar passava-se a imagem de gay=coisa má. Nunca se falava seriamente. Pelo contrário, o assunto era tabu. Os jovens que então se descobrissem atraídos por pessoas do mesmo sexo não tinham qualquer referência positiva.

Felizmente, houve quem desse a cara. E não foi coisa pouca, a capacidade de publicamente defender os homossexuais e de obrigar as pessoas a sairem da sua postura de varrer a discussão da homossexualidade para baixo do tapete, como coisa desagradável a ser evitada a todos os custos. Quem deu a cara, seguramente pagou um preço por isso. E eu, estou grato.

Como em todos os movimentos, há e sempre houve várias correntes. No movimento LGBT, definiu-se (não só em Portugal!) o casamento como uma prioridade. Por motivos óbvios, parece-me: por ser a luta contra uma discriminação legal. Muitas mais discriminações resistem, mas que estejam respaldadas na legalidade é algo que custa muito mais a aceitar. Pessoas como o Miguel Vale de Almeida fizeram por alcançar o objectivo do casamento para todos. Pouca coisa, talvez, para algumas pessoas da “malta dos anos 60″? O movimento LGBT não é refém de ideologias temporais, soma pessoas de “different walks of life” (como era moda dizer até há pouco tempo). Entre essas, alguns acharam o casamento uma conquista marcante, em troca do qual se poderia (para já) sacrificar algumas coisas. É assim, na política, fazem-se compromissos. “A malta dos anos 60″ talvez não os fizesse, mas se calhar se contasse apenas com eles não me poderia hoje casar, se quisesse.

A quem devo estar grato? Aos que querem lutar “pela defesa das condições sociais de todas e de todos os portugueses, nomeadamente dos homossexuais”, ou a quem conseguiu que eu me pudesse casar? Provavelmente aos dois, mas quem conseguiu algum resultado foram os segundos. E há, na vida portuguesa e na luta LGBT, um pré e um pós casamento. Não é justo julgar o Miguel Vale de Almeida (e o mainstream LGBT) sem ver o que ele fará no pós casamento, na luta por mais justiça. Mas se for para o julgar já, então teve uma excelente contribuição, derrubando uma discriminação legal. Manteve-se outra, é certo, que já lá estava. Culpamos por isso a orientação do mainstream LGBT?

Um bocado de humildade era bom. Um espírito de trincheiras, divisionista e crítico sem oferecer uma alternativa credível não ajuda nada. O mainstream LGBT definiu um objectivo e conseguiu-o. Por esse motivo deve ser parabenizado. É verdade que o mainstream LGBT deve definir outro objectivo e lutar por ele. Tal não vai ser conseguido com posts destes, de crítica sem apontar caminhos.

Seja como for, o casamento é importante. É muito importante. Talvez não seja para um soixante-huitard, mas é-o para muitas pessoas. E se é para muitas pessoas, é-o para a sociedade. Há que ter empatia para perceber isso.

Praia

Não gosto de areia, nem das pessoas umas em cima das outras, nem do bobby do vizinho, nem das criancinhas com as suas raquetes, mas este dia de praia soube mesmo bem e o mar foi só nosso.

Chanson du jour

sexta-feira, 21 de maio de 2010

E finalmente fiz lemon curd e com sucesso!

Discours des autres...

"Acho que no meio disto tudo o drogado do meu pai era o mais ponderado."

Chanson du Jour

O Norte - MEC

Primeiro, as verdades.

O Norte é mais Português que Portugal.
As minhotas são as raparigas mais bonitas do País.
O Minho é a nossa província mais estragada e continua a ser a mais bela.

As festas da Nossa Senhora da Agonia são as maiores e mais impressionantes que já se viram. Viana do Castelo é uma cidade clara. Não esconde nada. Não há uma Viana secreta. Não há outra Viana do lado de lá. Em Viana do Castelo está tudo à vista. A luz mostra tudo o que há para ver. É uma cidade verde- branca. Verde- rio e verde-mar, mas branca. Em Agosto até o verde mais escuro, que se vê nas árvores antigas do Monte de Santa Luzia, parece tornar- se branco ao olhar. Até o granito das casas.

Mais verdades.

No Norte a comida é melhor.
O vinho é melhor.
O serviço é melhor.
Os preços são mais baixos.
Não é difícil entrar ao calhas numa taberna, comer muito bem e pagar uma ninharia.

Estas são as verdades do Norte de Portugal.

Mas há uma verdade maior.

É que só o Norte existe. O Sul não existe.

As partes mais bonitas de Portugal, o Alentejo, os Açores, a Madeira, Lisboa, et caetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Não se junta.
Não se diz que se é do Sul como se diz que se é do Norte.
No Norte dizem-se e orgulham-se de se dizer nortenhos. Quem é que se identifica como sulista?

No Norte, as pessoas falam mais no Norte do que todos os portugueses Juntos falam de Portugal inteiro.

Os nortenhos não falam do Norte como se o Norte fosse um segundo país.

Não haja enganos.
Não falam do Norte para separá-lo de Portugal.
Falam do Norte apenas para separá-lo do resto de Portugal.

Para um nortenho, há o Norte e há o Resto. É a soma de um e de outro que constitui Portugal.
Mas o Norte é onde Portugal começa.

Depois do Norte, Portugal limita-se a continuar, a correr por ali abaixo.

Deus nos livre, mas se se perdesse o resto do país e só ficasse o Norte, Portugal continuaria a existir. Como país inteiro. Pátria mesmo, por muito pequenina. No Norte.

Em contrapartida, sem o Norte, Portugal seria uma mera região da Europa.
Mais ou menos peninsular, ou insular.

É esta a verdade.

Lisboa é bonita e estranha mas é apenas uma cidade. O Alentejo é Especial mas ibérico, a Madeira é encantadora mas inglesa e os Açores são um caso à parte.

Em qualquer caso, os lisboetas não falam nem no Centro nem no Sul - falam em Lisboa. Os alentejanos nem sequer falam do Algarve - falam do Alentejo. As ilhas falam em si mesmas e naquela entidade incompreensível a que chamam, qual hipermercado de mil misturadas, Continente.

No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Está muito estragado, mas é um estragado português, semi-arrependido, como quem não quer a coisa.

O Norte cheira a dinheiro e a alecrim.
O asseio não é asséptico - cheira a cunhas, a conhecimentos e a arranjinho.
Tem esse defeito e essa verdade.

Em contrapartida, a conservação fantástica de (algum) Alentejo é impecável, porque os alentejanos são mais frios e conservadores (menos portugueses) nessas coisas.

O Norte é feminino.
O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste, a timidez insolente da mulher portuguesa. Como um brinco doirado que luz numa orelha pequenina, o Norte dá nas vistas sem se dar por isso.

As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos verdes-impossíveis, daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se põem a escrever-se sozinhos.

Têm o ar de quem pertence a si própria. Andam de mãos nas ancas. Olham de frente. Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas não dão confiança. Olho para as raparigas do meu país e acho-as bonitas e honradas, graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas sem serem belas, erguidas pelo nariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas sem vaidade.
Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. Gosto da vergonha delas, da maneira como coram quando se lhes fala e da maneira como podem puxar de um estalo ou de uma panela, quando se lhes falta ao respeito. Gosto das pequeninas, com o cabelo puxado atrás das orelhas, e das velhas, de carrapito perfeito, que têm os olhos endurecidos de quem passou a vida a cuidar dos outros.
Gosto dos brincos, dos sapatos, das saias. Gosto das burguesas, vestidas à maneira, de braço enlaçado nos homens. Fazem-me todas medo, na maneira calada como conduzem as cerimónias e os maridos, mas gosto delas.

São mulheres que possuem; são mulheres que pertencem. As mulheres do Norte deveriam mandar neste país. Têm o ar de que sabem o que estão a fazer. Em Viana, durante as festas, são as senhoras em toda a parte. Numa procissão, numa barraca de feira, numa taberna, são elas que decidem silenciosamente.

Trabalham três vezes mais que os homens e não lhes dão importância especial.
Só descomposturas, e mimos, e carinhos.

O Norte é a nossa verdade.

Ao princípio irritava-me que todos os nortenhos tivessem tanto orgulho no Norte, porque me parecia que o orgulho era aleatório. Gostavam do Norte só porque eram do Norte. Assim também eu. Ansiava por encontrar um nortenho que preferisse Coimbra ou o Algarve, da maneira que eu, lisboeta, prefiro o Norte. Afinal, Portugal é um caso muito sério e compete a cada português escolher, de cabeça fria e coração quente, os seus pedaços e pormenores.

Depois percebi. Os nortenhos, antes de nascer, já escolheram. Já nascem escolhidos. Não escolhem a terra onde nascem, seja Ponte de Lima ou Amarante, e apesar de as defenderem acerrimamente, põem acima dessas terras a terra maior que é o "O Norte".

Defendem o "Norte" em Portugal como os Portugueses haviam de defender Portugal no mundo. Este sacrifício colectivo, em que cada um adia a sua pertença particular - o nome da sua terrinha - para poder pertencer a uma terra maior, é comovente.

No Porto, dizem que as pessoas de Viana são melhores do que as do Porto.
Em Viana, dizem que as festas de Viana não são tão autênticas como as de Ponte de Lima. Em Ponte de Lima dizem que a vila de Amarante ainda é mais bonita.

O Norte não tem nome próprio. Se o tem não o diz. Quem sabe se é mais Minho ou Trás-os- Montes, se é litoral ou interior, português ou galego?
Parece vago. Mas não é. Basta olhar para aquelas caras e para aquelas casas, para as árvores, para os muros, ouvir aquelas vozes, sentir aquelas mãos em cima de nós, com a terra a tremer de tanto tambor e o céu em fogo, para adivinhar.

O nome do Norte é Portugal. Portugal, como nome de terra, como nome de nós todos, é um nome do Norte. Não é só o nome do Porto. É a maneira que têm e dizer "Portugal" e "Portugueses".
No Norte dizem-no a toda a hora, com a maior das naturalidades. Sem complexos e sem patrioteirismos.
Como se fosse só um nome.
Como "Norte".
Como se fosse assim que chamassem uns pelos outros.
Porque é que não é assim que nos chamamos todos? »

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terça-feira, 18 de maio de 2010

Um pai

Não o conheci, apenas o ouvi, e não nas palavras dele. Contaste-me a vossa terra de imaginação, como acreditavas na vossa casa e no vosso chão. Os campos de esparguete que ansiavas ver mas não descobrias, não descobrias mas acreditavas, uma Tróia onde entrou um cavalo que não ficava no mediterrâneo, mas já ali tão perto pra os lados de Setúbal, e tu acreditavas, os snipers escondidos num jogo do beira-mar, das conversas diàrias que começavam sempre pelo estado do tempo e tu acreditavas. Esse foi o tempo da tua primavera. Não o conheci, apenas o imagino, imagino um homem que gostava das coisas boas da vida, o prazer dos livros, dos cigarros, das ideias, de um copo do whisky e a cima de tudo de uma boa conversa. Para quem as coisas práticas da vida foram uma maçada com que teve de lidar, pois tinha a noção da efemeridade e decidiu investir em coisas que importam como fazer-vos sentir protegidas e amadas como se ele próprio fosse uma casa sempre com a lareira acesa e um forte cheiro a chocolate. Depois veio o Inverno. A primavera não voltará. Um dia chegará o Outono em que começarás a pensá-lo, a lembrá-lo,à mesa, sentado no seu lugar onde te contava as histórias verdadeiras em que ainda hoje ousas acreditar e perceber que foi dele que herdaste essa ousadia, essa esperança de acreditar, o sentido de sonhar e a cima de tudo deixou-te a maior fonte de felicidade humana: a imaginação.

Winston Churchill

"Não há loucura mais cara que a do idealismo intolerante."

Recordar Saldanha Sanches - Uma entrevista sobre o Amor


Pública, 5/10/2008, Entrevista de Anabela Mota Ribeiro

Ela era a “renegada Morgado” e ele tinha o nome escrito nos muros de Lisboa: “O povo libertará Saldanha Sanches.” Depois desistiram da revolução, tiveram uma filha, descobriram com ela um mundo. Guardaram o inconformismo, a militância. Maria José Morgado e Saldanha Sanches ainda são revolucionários?

Eles já se permitem falar de fraquezas pequeno-burguesas. Como ter sentimentos, ter uma filha, a relação com a infância. Eles já se habituaram a vivê-las. Fazem imensa troça do radicalismo de um tempo – que é a forma de olharam para si, agora, e aceitar que foram outros. São desiludidos maoístas. São descrentes.
José Luís Saldanha Sanches, o fiscalista, não falou de Fiscal. Maria José Morgado, a procuradora incorruptível, não falou de corrupção. Falaram de uma coisa geracional. De um despertar colectivo que começou com a campanha de Delgado, e o apanhou a ele, mais velho. De um movimento que a fez despertar, a ela, na faculdade. Um movimento que apetecia. Foram um casal MRPP. Deixaram de ser MR’s e continuaram a ser um casal.

Num domingo à tarde, recuperaram as memórias de um tempo. Com ironia. Com distância. Com paixão. Talvez eles ainda sejam os mesmos. Sendo outros.
Já não são homofóbicos. Ela pinta os olhos. Ele sonha que está preso e que há nisso alegria. O mote era: “Vida simples, luta dura.” Tudo mudou e tudo ficou na mesma.

Se a vossa filha contasse a vossa história – a do vosso encontro, a do período revolucionário – contaria o quê?
Maria José Morgado (M.J.M.) – Responde tu.
Saldanha Sanches (S.S.) – Ela sabe pouco disso. Quem lhe fala mais do nosso passado revolucionário são as avós. Nem sabemos bem o que ela sabe a esse respeito. Ela é de outra geração, que reage mal à doutrinação.
M.J.M. – Ela ficou um bocado quixotesca, como nós. Penso que isso não é produto da educação, vem no sangue. Nós não somos pessoas viradas para o passado.

Porque é que foram as avós a contar-lhe e não os pais?
S.S. – Não acho adequado. Sobretudo porque ela tem a mesma rebeldia que nós tínhamos. Recusa os valores dos pais.
M.J.M. – Foi muito difícil para ela. Queria contestar os valores dos pais, mas foi sempre uma contestação falhada. O que é curioso é que a miúda sempre mostrou um grande apego por valores que estão fora de moda – liberdade, integridade, generosidade. A prisão, a repressão, a falta de liberdade, a PIDE ir buscar-nos a casa, as cartas que escrevi ao meu marido quando ele estava na prisão e as que ele me escreveu a mim… Os meus sogros passaram pelo menos seis anos da vida deles a caminhar para Peniche ao fim-de-semana; a minha sogra não tinha outro programa; e o resto da semana era para preparar a viagem: levar roupa lavada, os livros que podiam entrar, e pensar nisso. Isso marcou toda a família. A minha mãe também foi depois visitar-me à prisão e foi treinada nessas visitas pela minha sogra. Isso deixou-lhes uma marca de angústia e sofrimento inultrapassável. Isto fazia parte das histórias de criança que contavam à miúda.

Com uma inevitável glorificação dos pais…
M.J.M. – Claro que para os meus sogros e para os meus pais nós somos o máximo!
S.S. – [Risos] É normal.

O mártir que levou tiros. O exemplo de coragem.
M.J.M. – A minha sogra tinha a camisa ensanguentada do meu marido numa gaveta de uma cómoda – que eu, por acaso, deitei fora!
S.S. – Estava tudo cheio de traça.
M.J.M. – Pois estava! Ela ficou toda triste porque eu deitei fora.

Ela interpelava-vos, depois de ouvir das avós?
S.S. – Não. Reservava-as. Hum… É preciso combater a ideia de que o passado é que era bom.
M.J.M. – Nós crescemos com ela, aprendemos a conhecer o mundo com ela. A Laura é o produto do refluxo. Nasceu porque tínhamos decidido que não havia revolução, que íamos sair da revolução porque [esta] não existia. Saímos do MRPP em 75, e eu gostava de ter uma criança. Ao meu marido, tanto fazia. Mas eu quis muito. E queria uma rapariga, que se ia chamar Laura.

Em homenagem a quem?
M.J.M. – Tinha uma ligação muito forte com uma tia-madrinha que morreu quando eu estava presa em Caxias. Foi uma sorte ter nascido rapariga.
S.S. – A minha mulher tinha uma relação especial com a sua madrinha, que em parte a tinha criado porque os pais estavam em Angola. Ela morreu meio por coincidência, meio por desgosto, porque não se adaptou à ideia de ter uma “filha” na cadeia.
M.J.M. – Era uma mulher da aldeia, muito camiliana.

Li uma carta que escreveu da cadeia aos seus pais. Diz-lhes para terem serenidade. E que encara a prisão com uma grande naturalidade.
M.J.M. – Era o risco que corríamos. Fazia parte da vida. Não lamento nada.
S.S. – Era o preço que se pagava. Não era surpresa. A única hipótese de ser um revolucionário contra aquele regime era assumir com naturalidade e sem dramas que se vai ser preso e torturado. Ainda hoje fico escandalizado quando vejo excesso de choradeira de alguém que esteve preso. Essa mentalidade é de quem está derrotado. A única forma eficaz de combater o regime era aceitar com quase alegria, com entusiasmo os sacrifícios, a cadeia.
M.J.M. – Estávamos presos por uma coisa que hoje parece bizarro: delitos de opinião. É uma boa lição: ensina-nos a ser tolerantes, a compreender e aceitar.
S.S. – Embora não fôssemos tolerantes. Fico espantado quando vejo pessoas com um passado como o nosso passarem para posições de um hiperconservadorismo.
M.J.M. – A experiência mais preciosa que tivemos foi aprender a ser flexíveis. Pluralistas.

Já vamos à transição do dogmatismo para o cepticismo e a tolerância. Mas, agora, gostava de me fixar na saída do MRPP. Quando fala de descobrir um mundo com a sua filha, fala de descobrir um mundo…
M.J.M. – Normal! O mundo MRPP era um mundo artificial construído com base no dogma.
S.S. – O novo mundo era estar em casa ao sábado, a folhear o Expresso, em vez de ter uma reunião em qualquer parte. O novo mundo é voltar à ideia de ter um fim-de-semana.
M.J.M. – É almoçar e jantar com a família. É ir ao cinema. É o mundo da banalidade.
S.S. – É o mundo com o heroísmo doméstico de pagar a casa, as contas.

O vosso heroísmo até então era mais inflamado, dramático. Como é que encontraram alegria nessa nova forma de heroísmo, o doméstico?
M.J.M. – Ele é alegre e optimista, eu sou muito neura.
S.S. – Ela tem de estar ocupada a cem por cento para estar bem-disposta. Se trabalhar das oito às oito, está satisfeita.

Reconstitua o momento em que saiu do MRPP.
S.S. – Um ser racional e não apaixonado, lúcido, sem teias afectivas, quando foi o 25 de Abril, tinha saído. Quando o MR diz que não houve revolução democrática, que ficou tudo na mesma…
M.J.M – Era um golpe social fascista…
S.S. – Um golpe burguês. Publicou um comunicado muito ridículo, que valia a pena ser lido agora, que dizia: “Quando os chacais e as hienas rivalizam…”
M.J.M. – Era hilariante! Nós não guardamos nada, mas se calhar [o comunicado] já está na Internet.
S.S. – Eu disse que era ridículo, mas não saí.

Porquê?
S.S. – As amarras eram fortes. Os afectos. O companheirismo. O orgulho de estarmos a fazer coisas engraçadíssimas. A eficácia da luta.
M.J.M. – Não ganhávamos nada por estar no MRPP – é bom que se diga. Não era daquela política que dá vantagens. Eram os nossos pais que nos alimentavam e vestiam e calçavam.
S.S. – E nos ajudaram mais tarde a acabar o curso. À medida que passava o tempo ia-se vendo com mais clareza que aquilo era uma fraude. O MR não conseguia manter nada de pé: tudo se esboroava. E havia dois pólos que se confrontavam: o pólo ligado à classe operária, unido e organizado à volta do PCP, e o pólo das pessoas que queriam a democracia, uma economia de mercado, que queriam o Mário Soares. Entre esses dois pólos, a posição do MRPP não era nenhuma! Não suportava nada que se parecesse com o PC, porque tinha a ideia peregrina de que a classe operária era nossa! Nas fábricas éramos odiados… Éramos da burguesia, da CIA…

Sobretudo eram uns meninos a quem os pais alimentavam e vestiam. Uns privilegiados. E por isso eram olhados de soslaio.
M.J.M. – Sim, não tínhamos dificuldades.
S.S. – Mas não nos podíamos aliar ao outro lado, porque era antimarxista-leninista e pró-mercado. Era o desespero. Um impasse. Até que um dia cheguei a casa e disse à Maria José: “Não volto àquilo.”
M.J.M. – Eu não acreditei. Pensei cá para mim: “Vais dormir e depois acordas bem-disposto e não se passou nada.” O pior foi quando no outro dia de manhã estava tudo conforme tinha decidido na véspera. Eu tinha também de decidir.

Não podia ficar sem ele…
M.J.M. – Tínhamos a mesma opinião, ele é que se adiantou no corte. Foi capaz afectivamente da ruptura. Eu tenho dificuldade: gosto de fazer sempre a mesma coisa, de estar sempre com as mesmas pessoas, não gosto de mudar. E mesmo não acreditando em nada e vendo que tudo era uma farsa, se não fosse alguém como o Zé Luís, ainda hoje lá estava.
S.S. – Já não há onde estar.
M.J.M. – É uma forma de dizer que tenho dificuldade em fazer rupturas que impliquem zangas pessoais.

Era o que queria dizer, nessa altura, sair de um partido. Deixavam de se falar, viravam a cara.
M.J.M. – Era pôr termo a um mundo. Chamavam-nos nomes na rua. Eu era a “renegada”.
S.S. – O ambiente era pesado. Quando saí do MRPP fui à sede buscar uma pistola e munições. A hipótese de haver tiroteio não era de excluir. Mas era tudo, também, muito artificial. Pouco a pouco a temperatura foi baixando e deitei a pistola fora. Se fosse preciso usá-la, não sei se seria capaz. Havia uma tendência para a resolução das coisas pela violência.

Seria possível ficar no MRPP sem o seu marido?
M.J.M. – Tive mesmo de escolher. Como não acreditava no partido nem na ideologia marxista-leninista, não havia nada a salvaguardar desse lado. Nunca mais pensámos em lógicas partidárias. Fiquei vacinada.
S.S. – Ainda tentámos a UDP, vagamente, mas de forma descrente. Como última tentativa.

O que vos vacinou, mais que tudo, foi constatar a inevitável degenerescência?
M.J.M. – Era inevitável porque a ideologia marxista-leninista é mecanicista, é má, e o partido em si não valia grande coisa. Nunca tive vocação para a militância partidária. Fui horrível enquanto militante do MRPP, se calhar fazia uma triste figura nos meetings – até porque era muito fanática. Isto é para dizer que mesmo o namoro com a UDP foi inconsequente e sem duração. Tivemos oportunidades para entrar em partidos, mas nunca quisemos. Acabei o curso e vim para o Ministério Público, que era aquilo que queria.

Em 1976 a vossa carreira política estava encerrada.
M.J.M. – Não se lhe pode chamar carreira! Foi um fiasco! [risos]

Quiseram ser políticos?
S.S. – Não. Éramos revolucionários.
M.J.M. – Era a luta por um mundo melhor, com tudo o que isso implicava: liberdade, pluralismo…
S.S. – Mas éramos estalinistas. Com alguma crítica, mas aceitávamos o Estaline.
M.J.M. – E o Bando dos Quatro. Mas se quisermos coar isso tudo, e não é para nos safarmos, no fundo o que queríamos era o que temos hoje: liberdade.
S.S. – Não, liberdade não era um valor que nos interessasse. O que nos interessava era a justiça pura, não haver miséria… Quando deixei de acreditar naquilo, via uma pessoa a pedir na rua e ficava deprimido. Porque eu achava que tinha uma solução. Depois reparei que não havia solução nenhuma. Era uma coisa missionária, quase religiosa.
M.J.M. – Éramos muito frugais, vestíamos muito modestamente…
S.S. – Embora tomássemos banho… [gargalhada]
M.J.M. – Há coisas que nunca nos passaram. Nunca comprámos um carro. Eu não tenho carro, o meu marido não tem carro e a minha filha não tem carro.
S.S. – Também por mania, para não seguir toda a gente. Nunca foi nosso objectivo ganhar muito dinheiro. Pode haver aqui uma racionalidade burguesa: pensar na aurea mediocritas do Horácio e a partir daí estamos bem. Vejo gente a meter-se em negócios para comprar uma casa de campo gigantesca… São loucos! Vale lá a pena sujar a face, entrar em compromissos inaceitáveis, fazer coisas que devem moer lá na cabeça para comprar uma casa?

Quando saíram do MRPP…
M.J.M. – Isso foi no tempo em que os animais falavam! Não havia Internet, não havia telemóvel. Às vezes penso que devemos ser mesmo muito velhos. O Muro de Berlim não tinha caído. Tiananmen não tinha acontecido.
S.S. – Em 76, 77, 78 ia caindo mais uma ilusão, outra ilusão. Para nós a queda do muro é o Deng Xiaoping a dizer que o socialismo tinha acabado na China. É evidente que o Brejnev não era socialismo. A China, depois do Deng Xiaoping, também já não é socialismo. Será que todo o socialismo desaba?

Com a evidente falência do que estava para trás, como é que olhavam para o que tinham sido?
M.J.M. – Não tivemos tempo para isso. Tivemos de começar a ganhar a vidinha.
S.S. – Também não somos completamente irracionais… Perturba-me que as minhas relações com pessoas com o mesmo percurso do que eu sejam mais difíceis do que com gente que esteve sempre no pólo oposto. Gente que hoje vejo envolvida em abjectos esquemas de corrupção: não posso ter nada a ver com essa gente, apesar do passado comum. A legitimidade da democracia é corroída todos os dias pelo fenómeno da corrupção.

Significa que hoje pode dar-se com pessoas de direita?
S.S. – Tenho amigos próximos que são claramente de direita, e que respeito profundamente pela sua honestidade ou valor intelectual. As pessoas evoluem. Parece que valores morais importantíssimos se gastaram, e foram transformados em moeda de troca para os arranjinhos da vida corrente – que envenenam o país.
M.J.M. – As pessoas perderam a cabeça com os negócios. Eu tenho horror aos negócios…

Continuam a ler juntos o jornal? Continuam a discutir a ideologia?
M.J.M. – A honestidade não é uma ideologia. Era o que eu dizia da nossa filha, que não tirou Direito, que é professora de ioga, e que tem valores iguais aos nossos.
S.S. – Há um certo absolutismo moral que usávamos da forma errada quando éramos revolucionários – havia uma linha de conduta e se alguém se desviasse dela era tratado abaixo de cão, como um inimigo do povo; isso era totalitário e mau. Mas havia também a ideia de que a ética era um valor central.
M.J.M. – A arrogância moral da esquerda era detestável. Cega-nos! Ficamos incapazes de distinguir as coisas. O ideal é ser sistematicamente problemático, duvidar sempre. Obriga-nos a pensar, a ponderar. Nunca nada é o que parece. Isto sem nos transformarmos em baratas tontas…
S.S. – Mas há coisas que se mantêm como relativas certezas. Fiquei muito aliviado quando soube que o Habermas tinha uma teoria da ética na base do discurso, com base numa prática social fortíssima. Mostra-nos que podemos ter uma ética bem ancorada sem termos uma ideia da revolução social marxista-leninista, ou ligada à Igreja.

Interessava-lhe saber o que o Habermas fazia todos os dias?
S.S. – Não. Ele não era o meu guia espiritual.
M.J.M. – As pessoas que admiramos não se devem conhecer pessoalmente, que apanhamos desilusões.

O que é que sabia do jovem Saldanha Sanches, que era mais velho e já tinha estado preso, quando o conheceu?
M.J.M. – Não sabia nada. A minha mãe quando soube que nós namorávamos até disse que eu estava a namorar com um cadastrado! [risos] Eu não estava preocupada com namoros. Só queria mudar o mundo, e fazer um mundo perfeito onde não houvesse pobres e ricos, e onde houvesse justiça. Depois, quando eu ia para a faculdade, como morávamos no mesmo quarteirão, ele começou a pendurar-se. Vinha atrás de mim a seguir ao almoço, de transportes ou a pé. E eu pensava: “Que chatice, este tipo nunca mais me larga.” Depois ele disse que queria namorar, e a mim não me apetecia nada…
S.S. – Não me mandaste passear – como se vê…
M.J.M. – Cá estamos, pronto. Era uma época atribulada, em que não havia tempo para os sentimentos.

Para um revolucionário, os sentimentos eram uma fraqueza…
M.J.M. – Eram.

Se ela não fosse revolucionária, interessar-se-ia por ela?
S.S. – Nem pensar. Tínhamos um código de conduta impiedoso.
M.J.M. – Tu eras terrivelmente intransigente.
S.S. – E tu também! Eu era mais flexível do que tu. Quando fui preso da última vez, ela foi presa logo a seguir. Disseram-me que a iam fazer falar. Para me ferir, como é evidente. Estava tão seguro dela que respondi: “Se ela falar, eu também falo.” E foram-se embora furiosos. Conhecia tão bem o fanatismo da Maria José que sabia que não ia falar.

Como é que se treina um revolucionário para não falar?
M.J.M. – Temos de acreditar. E ser firmes. Não se explica: ou é ou não é. Medo toda a gente tem, mas o medo não pode desorientar-nos ao ponto de cedermos.

Há uns que só descobrem no momento que são “fracos”, que acham que não vão falar e falam.
S.S. – Há estímulos. Há experiências partilhadas. Há provas. Uma manifestação antes do 25 de Abril era uma manifestação de coragem tremenda. A pressão policial era terrível.

Mas isso é coragem física.
M.J.M. – Elas são inseparáveis, e a espiritual é que faz a física.
S.S. – Sabia-se que se podia ir para a cadeia.
M.J.M. – Ou partíamos a cabeça.
S.S. – Quem não aguentasse isso, ficava logo excluído.

Foram espancados?
M.J.M. – Fui espancada com o cavalo-marinho, fiquei com o corpo negro. O sono era a base, mas também podiam bater. No meu caso foi diferente. Provoquei-os, chamava-lhes nomes…
S.S. – Eu estava numa cela e ela passou aos gritos pelo corredor.

Como é que sabia que ela não falaria? Ao cabo de dez dias sem dormir, aparecem as alucinações…
M.J.M. – Eu estive só sete dias sem dormir.
S.S. – Ao fim de dez dias, o corpo cai.
M.J.M. – O problema de não falar é não denunciar a organização e as pessoas.
S.S. – Tenho lido alguns livros sobre tortura nas prisões jordanas a mando do Bush e aquilo é sinistro: as pessoas saem de lá mortas ou arruinadas para o resto da vida. Nós sabíamos que íamos estar a pancada e sem dormir um certo tempo, mas ao fim de três meses tudo estaria acabado. E ficaríamos inteiros. Não nos iam arrancar olhos, nem cortar dedos, nem unhas sequer. A violência era grande, mas via-se a luz ao fundo do túnel.
M.J.M. – O processo era uma farsa. A pena que a PIDE propunha para mim eram oito anos de prisão – ia ser, se não fosse o 25 de Abril. Era um processo penal fascista.

Sair com a honra intacta era o mais importante. A delação era o pior dos fantasmas?
M.J.M. – Era, era.
S.S. – Lembro-me de uma pessoa sair da cela onde eu estava, para ser interrogada, sabendo que ia falar, que ia revelar mais coisas… O drama não era ser torturado, era saber que ia falar. Já tinha falado uma vez, não confiava em si e, devidamente espancado e com dias de sono, contaria o resto.
M.J.M. – Era uma perda da identidade.
S.S. – De dignidade. De uma pessoa que a rastejar denunciava o irmão, o pai, o tio.
M.J.M. – Todas as polícias políticas jogam com isso: porque é o que quebra o elo com a organização.

Imagino que se deram com pessoas que falaram…
S.S. – Muitas. A maior parte [falou].
M.J.M. – E damos. Já acabou tudo. Na altura não.
S.S. – A maior parte quebrava porque aquilo era muito eficaz.

Era uma coisa de que se orgulhavam – a coragem, não falarem?
S.S. – Até excessivamente. Era a parte pior: a arrogância de que isso nos investia.

O que é que aconteceria se um dos dois falasse?
S.S. – Era o fim da relação.
M.J.M. – Não estávamos aqui. Não éramos a mesma coisa um para o outro.
S.S. – O inspector Tinoco dizia à Maria José: “Podes falar menina, não te preocupes, o Zé Luís continua a namorar contigo.”

Foi o período mais feliz das vossas vidas? Existia uma exaltação colectiva e os excessos são desculpados porque foi uma aventura?
M.J.M. – Chamar-lhe o período mais excitante da minha vida é um exagero. É uma memória cristalizada. Éramos ingénuos, acreditávamos que íamos mudar o mundo e éramos felizes assim. Mas temos de nos ver com algum sentido de humor. A esta distância, somos como que personagens de banda desenhada!
S.S. – Havia alguma transcendência. Avançávamos em direcção à morte, à polícia de choque…
M.J.M. – Pensávamos que éramos eternos. E invencíveis.

E se fosse preciso morrer…
M.J.M. – Morríamos.
S.S. – E achávamos isso naturalíssimo. Havia um panteísmo, e o movimento continuava.
M.J.M. – Vejo isso de modo desfocado e longínquo, como se fosse outra pessoa que não eu. E convém ter alguma separação.
S.S. – Mas aquilo podia levar a actos de violência indesculpável…

A barreira que fecha esse mundo e abre outro é a saída do MRPP e o nascimento da vossa filha?
M.J.M. – É simplificar muito…
S.S. – Ter filhos é uma grande mudança. É terrível para os revolucionários terem filhos porque são uma forma extrema de vulnerabilidade, ainda mais do que o sentimento.

Como é que o estudante-mártir, o revolucionário-modelo se permite ter sentimentos e “andar atrás” dela?
M.J.M. – Ele tinha saído de Peniche onde tinha estado seis anos. Foi preso com 21 anos e saiu com 27 ou 28. Eu tinha 20. De maneira que ele estava numa fase de revelação do mundo.
S.S. – De integração.
M.J.M. – De reinserção social! [risos]
S.S. – Queria voltar a ter uma namorada. Isso era-nos permitido – vá lá.

Ter uma família era incompatível com a vida revolucionária? Porque desviava daquele sacerdócio.
S.S. – A solução prática era ser um casal revolucionário. Duas pessoas com trajectos paralelos que seguiam juntas esse mesmo trajecto.

O sentimento era condicionado. O leque de possibilidades estava circunscrito.
S.S. – É sempre circunscrito. Não casamos com toda a gente…

Não quis namorar a filha do sapateiro, analfabeta e desligada das questões da revolução…
S.S. – Vou dizer mais: verificava-se que os casamentos aconteciam dentro da mesma classe social. O fulano da classe mais alta casava com a rapariga da classe mais alta. E a moral revolucionária era pequeno-burguesa. A nossa opção em relação à homossexualidade era pequeno-burguesa.

Não sei qual era a vossa opinião sobre a homossexualidade.
S.S. – Então pergunte ao senhor da paróquia… era essa!

Depois do Maio de 68 e de uma liberalização dos costumes?
M.J.M. – Não tínhamos muito a ver com o Maio de 68… La Chinoise, do Godard, mostra a diferença.
S.S. – A nossa tradição era operária – ou julgávamos que era operária – e portanto pequeno-burguesa. É claro que havia infidelidades – porque há sempre.
M.J.M. – O Pacheco Pereira tem um belo livro sobre a clandestinidade em que explica isso muito bem. Faz uma boa radiografia da moral comunista.
S.S. – Só muito tempo depois de termos deixado tudo isso, passei a achar a homofobia um disparate. O Robespierre dizia que o ateísmo era aristocrático; nós também acharíamos que a liberdade de costumes era burguesa. Como achávamos abominável que alguém fumasse um charro de marijuana.

Eram muito puritanos.
S.S. – A liberdade de costumes era a decadência burguesa, de que não gostávamos.
M.J.M. – Era “Viver, pensar e agir como um revolucionário”. Não era a libertinagem – embora às escondidas pudessem acontecer coisas!

“Viver, pensar e agir como um revolucionário” era uma carta que o MRPP dava aos seus membros, cuja origem está relacionada com um caso de adultério. Um clandestino é acolhido numa família e envolve-se com a mulher do amigo.
S.S. – Foi um caso discutido nas células. No PC, aliás, a vida sexual das pessoas era discutida nas células. Quem tinha trapalhadas com mulheres, podia ser criticado. No MR, pior ainda!
M.J.M. – O MR decalcava o Partido Comunista.

Se alguma vez, há 35 anos, imaginou que poderia dizer que o MR era decalcado do PC…
M.J.M. – Imaginei, imaginei: quando saí.

Os dois tinham a fama de estar sempre prontos para a pancada.
M.J.M. – Isso tínhamos.
S.S. – Sou brigão e trauliteiro. Apesar de tudo, mais calmo com a idade.
Quando apanhou o tiro, uma parte de si ficou contente?
S.S. – O sentimento é confuso. Quando uma pessoa acorda, pensa: “Grande sarilho em que me meti.” Porque vê que é a sério, que fez algo de irreversível, que vai ter consequências, que vai parar à cadeia. Mas depois fica a alegria de ter feito aquilo bem – ter resistido, ter sido capaz de resistir. Eu podia ser muito corajoso e não ser capaz de entrar aos murros ao polícia. Há pessoas de uma grande coragem moral sem essa coragem física.

Já sabia que tinha essa coragem? Pôs-se à prova nesse momento?
S.S. – Queria tê-la. Fazia parte do meu projecto de vida ter essa coragem.
M.J.M. – A coragem não é espontânea. É uma decisão. Temos medo, mas explicamos a nós próprios que temos de nos aguentar. E aguentamos. Quantas vezes a pessoa sente as pernas a tremer…
S.S. – Quando os gorilas chegaram à Faculdade de Direito fazia-me muita impressão não conseguir andar à pancada com eles, porque eram muito mais fortes do que eu, eram profissionais. [risos] Uma vez, ainda estava com a mão a meio caminho e já estava com não sei quantos murros na cara. Era muito vexatório.
M.J.M. – A mim não me batiam porque era mulher e era pequena; pegavam em mim ao colo e punham-me à porta da faculdade. Se me tocassem desfaziam-me. Mas estamos a fazer psicanálise…

Que, presumo, não chegaram a fazer… Era ultraburguesa.
M.J.M. – Que disparate! Era uma coisa ultrajante, aviltante! [risos] Ríamos de quem fazia.
S.S. – Temos uma excelente saúde mental.
M.J.M. – Ou não temos, mas pronto.

Renasceram. Tiveram de aprender a lidar com os excessos do passado, com aqueles que foram e que deixaram de ser.
M.J.M. – Sim. Mas toda a vida é isso. Acontece com toda a gente. Aquilo foi uma experiência muito intensa. Pequena, mas intensa. A nossa vida é muito maior do que isto.
S.S. – É outro mundo. Somos outros.

Acontece terem estas conversas entre os dois?
M.J.M. – Não. Só se nos encontramos com amigos daquele tempo. Amigos que contam histórias com graça. Isto são conversas para um domingo ao fim da tarde. Se nos puséssemos a falar disto, as pessoas poderiam pensar que éramos maluquinhos, ou que somos mitómanos.

Voltando à psicanálise: normalmente fala-se da infância, dos sentimentos, da relação com a mãe e o pai. Durante o período revolucionário, esses assuntos eram menorizados.
M.J.M. – Eram fraquezas pequeno-burguesas.
Quando é que olharam para a vossa infância, para a relação com os vossos pais, para os sentimentos?
M.J.M. – Não preciso de olhar para a minha infância ou para a relação com os meus pais. São coisas naturais, não precisam de ser escavadas. As coisas difíceis é que precisam de ser pensadas, não as naturais.

Se perguntar qual é a primeira recordação que tem de si, qual apontaria?
M.J.M. – Não faço ideia, e não ia dizer publicamente.
S.S. – Não tenho nenhum problema a esse nível. As minhas relações familiares são excelentes. Tive a adolescência do costume, a contestação aos meus pais – em especial ao meu pai. Não tenho traumas de infância.
M.J.M. – Tenho, mas não é trauma, é a recordação da pobreza em Trás-os-Montes. Das pessoas descalças no Inverno.
S.S. – E estavas do lado rico.
M.J.M. – Mas vi.

Os seus pais eram em África, onde viveram, os “colonizadores”. E indignava-se com a pobreza e a hierarquia social. A sua batalha política era também uma forma de rebelião contra os pais?
M.J.M. – Não, era um coincidência.
S.S. – Era, Maria José, era.
M.J.M. – Não começou por ser isso.
S.S. – O meu pai era empresário e eu achava que a exploração dos operários era intolerável. E olhavas o teu pai como um funcionário colonial.
M.J.M. – Sim. Mas se o meu pai não tivesse essa condição, provavelmente faria o mesmo.

Quando chegou à faculdade, o movimento estudantil que encontrou foi o que a fez encontrar-se.
M.J.M. – Era mobilizador. Tinha uma grande força, transcendência, era tentador. Apetecia.

Como é que formalmente aderiu ao MRPP?
M.J.M. – Ah, não havia burocracias! Já era simplex! Fui recrutada pelo João Isidro, que já morreu.
S.S. – Era um brilhante agitador da faculdade.
M.J.M. – Sabia imenso de cinema e literatura, era muito culto, uma pessoa admirável. Um dia convidou-me para uma reunião e a reunião era para me recrutar para o MRPP, no meio de uns poemas que ele leu.

Depois, foi a sua vez de recrutar Durão Barroso e Ana Gomes.
M.J.M. – Isso foi depois do 25 de Abril – a Ana foi antes.
S.S. – O Durão Barroso ficou com a marca [MRPP] para o resto da vida.
M.J.M. – Da marca não me importo, não me envergonha. Não gosto de falar demais destas coisas porque já é reconstruí-las – é como dizia o García Márquez: viver para contá-las. A recordação é sempre uma montagem. É bom saber o que se passou, qual era a nossa condição e o peso dessa experiência. Mas nada mais do que isso.

Foi recrutada e a partir daí sentia-se parte.
M.J.M. – Uma enorme responsabilidade. Aí é que começou o verdadeiro treino revolucionário: prepararmo-nos para as pinturas nas paredes, se fôssemos presos não falarmos, distribuir panfletos (que era arriscadíssimo).

Estava psicologicamente preparada para a possibilidade de ser presa. Quando isso aconteceu, como reagiu?
M.J.M. – Fui presa por uma razão de delação. Dois estudantes, muito jovens, não resistiram à pancada e sob tortura falaram no meu nome. Não lhes levo a mal. Sou amiga deles.
S.S. – Resistiram bastante tempo.
M.J.M. – Mas depois falaram. A PIDE teve a prova de que eu fazia parte do grupo. Nessa altura já não estava em casa dos meus pais, estava na chamada clandestinidade. Tinha alugado um quarto.

Quem pagava o quarto?
M.J.M. – Eu, com o dinheiro que os meus pais me davam.
S.S. – O partido, se fosse preciso, também dava.
M.J.M. – Sim, mas era a minha mãe que me dava. Ao fim de um tempo, vinha para casa de uma reunião, de madrugada, e vi uns carros à porta. Eu vinha com uma incumbência: queriam que eu escrevesse uma coisa sobre “os novos revisionistas: cães de trela do social fascismo”! Já tinha escrito aquilo umas três ou quatro vezes e achavam sempre que estava mal. Rasgavam tudo, para que eu não pudesse aproveitar nada do que tinha feito. Vinha muito desgraçada da vida porque achava que nunca mais na vida ia ser capaz de escrever um texto que aprovassem. Cheguei a casa, bati à porta, vi a sala cheia de fumo e, quando o senhor me mostra o crachá, pensei cá para mim: “Olha que alívio, já não faço o texto sobre ‘os novos revisionistas: cães de trela do social fascismo’!”

Pela vida fora foram sonhando com o que viveram na cadeia?
M.J.M. – O pesadelo que tenho é que vou fazer uma viagem, tenho de fazer as malas e não consigo, e vou perder o avião.
S.S. – Não tem acontecido, mas há uns anos sonhava que estava preso. Mas não era um pesadelo. Estava contente por estar preso, e discutia. O meu pesadelo também é do género de estar numa qualquer parte do mundo e não saber onde é o meu hotel. Estou na rua, aflitíssimo, e não sei como regressar.

Como foi a sua primeira vez preso?
S.S. – Foi essa dos tiros, no Hospital de S. José.

O seu advogado da altura foi Mário Soares.
S.S. – Foi. Ofereceu-se para ser meu advogado e foi muito agradável.
M.J.M. – Fez uma grande defesa, com grande generosidade. Impagável e inesquecível.
S.S. – Os advogados que iam a plenário não nos cobravam honorários, estavam lá por pura militância.

No seu período mais longo na cadeia, seis anos, desliga-se do PCP.
S.S. – Eu tinha ficado no PCP embora fosse pró-maoísta desde 1961/62. O Veiga de Oliveira convidou-me para a clandestinidade e foi o décimo convite – como os nove anteriores disseram que não e eu disse que sim, fui eu. Ele já sabia da minha tendência pró-chinesa. Fui denunciado e fui preso, como de costume, e com grande descuido meu. Aliás, a clandestinidade não me atraía nada.
M.J.M. – Ser torturado sempre era mais animado!
S.S. – Estar na cadeia, ler, estudar, discutir, era melhor do que andar de reuniões em reuniões.
M.J.M. – Ele até se casou depois de preso para ter visitas com a noiva. Ela era, e ainda hoje é, militante do Partido Comunista. Separam-se sem casamento consumado.
S.S. – Quando saí do PC, ela não quis sair, e foi a ruptura.

A razão foi essa?
S.S. – Acha pouco? [risos]

Doutorou-se com o professor Martinez. O jovem revolucionário acharia esta opção improvável, no mínimo.
S.S. – O mais improvável na altura era licenciar-me. A faculdade era um campo de luta, a licenciatura era uma coisa que podia acontecer ou não – não tinha importância. O dr. Martinez, antes do 25 de Abril, tinha-me expulsado da universidade. Após o 25 de Abril tínhamo-lo expulsado nós. A partir dos anos 80 é para mim claro que na universidade ninguém podia ser discriminado por razões políticas – senão, como é que eu lá estaria?, eu era ainda muito de esquerda. As questões políticas desaparecem e há outras coligações e outras alianças. Eu queria fazer [Direito] Fiscal e o catedrático de Fiscal era o dr. Martinez.

Já não era o mesmo homem. Porque o jovem revolucionário fundia o respeito político e o académico.
S.S. – O jovem revolucionário não aceitava a faculdade no seu conjunto. Aquela faculdade era um bastião do regime. A faculdade e os professores eram inimigos.
M.J.M. – Eu acho que uma relação académica assim torna-se mais interessante, atendendo aos seus antecedentes…
S.S. – O saneamento de todos os professores, malevolamente atribuído ao Durão Barroso: fomos todos responsáveis por ele.
M.J.M. – E foi um disparate.
S.S. – Foi um disparate em termos académicos. Mas politicamente não havia outra hipótese.

“Foi uma coisa geracional” – dizia o José Luís numa entrevista antiga.
M.J.M. – Foi uma época passageira. Assim como é a rubéola [gargalhada].

Depois passa, e o que é que fica? A disciplina é a mesma?
M.J.M. – A disciplina é para mim como o ar que respiro. A adesão ao movimento revolucionário passa por aí – tinha a transcendência do esforço. Sou capaz de nadar 1000 metros para trás e para a frente naquela monotonia. A pensar em nada. Na repetição. Prefiro repetir: tenho a certeza de que me engano menos. E tenho alguma insegurança na mudança. Talvez porque o meu pai, porque era funcionário administrativo em Angola, de tempos a tempos, tinha de mudar de terra. Mudávamos de amigos, hábitos… Passei a minha infância com saudades atrás de saudades. Quando passei a mandar na minha vida, a coisa mais importante que decidi é que nunca ia mudar nada. É por isso que ainda estou com ele! [risos] Quando saí do Tribunal de Instrução Criminal, por exemplo, saí lavada em lágrimas – sem ninguém ver, às escondidas.

Diz que a polícia a tornou sentimental.
M.J.M. – Sou muito.

As pessoas vêem-na como uma justiceira durona.
M.J.M. – A culpa é das imagens que se criam, desligadas das pessoas. Quem me conhece sabe que não é assim.

Da sua imagem, também faz parte um guarda-roupa original e o modo como pinta os olhos. Vestir de uma maneira espartana, renegar a vaidade – um pecado capitalista – eram regras dos tempos revolucionários. Quando é que começou a pintar os olhos? Quando é que se permitiu a vaidade?
M.J.M. – Os olhos: é a estética anos 60. O vestir: hoje já não se distingue entre o que é convencional e não. Pode haver alguma aspiração estética (falhada!) da minha parte. Uma necessidade de fugir à vulgaridade – por razões estéticas. Ah, mas é claro, durante a revolução não pintava os olhos!

Quando ela lhe apareceu de olhos pintados, gostou?
S.S. – Foi gradual. Não desgostei. Acho que nas pinturas há alguma sensualidade, e num casal tem de haver sensualidade. Mas pinta mal – como toda a gente sabe!

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Chanson du Jour

Bento XVI

"O sofrimento da Igreja vem do interior da Igreja, dos pecados que existem na Igreja. Considero isso algo verdadeiramente aterrador. A maior perseguição à Igreja não vem dos inimigos do exterior mas nasce, sim, dos pecados da Igreja. Existe a grande necessidade de se cumprir a penitência, de aceitar a purificação, de forma a procurar o perdão mas também a justiça. O perdão não exclui a justiça".

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Ontem foi um dia triste

... mas fica a tua frase que define bem a nossa amizade: "ainda bem que vieram, estava farta que as pessoas olhassem para mim como a miúda que lhe morreu o pai."

Chanson du Jour

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Les discours des autres

"...dir-te-ia que os desencontros são a entrega dos tristes, e que eu sou alegre."

Chanson du Jour

Ceia em Santa Isabel

O voluntariado não me é estranho desde os 19 anos, muitas vezes o pus em causa assim como fui pondo a minha fé católica pois estiveram invariavelmente ligados. Comecei em 2001 nos Hospitais da Universidade de Coimbra no serviço de Hematologia onde não consegui aguentar a naturalidade de sorrisos em situações tão difíceis e circunstâncias tão dolorosas pensando muitas vezes que se fosse eu a estar naquela situação difícilmente teria a dignidade de muitas daquelas ainda crianças, pedi então para mudar e passei para o serviço de Gastrologia onde fiquei durante um ano e meio e onde aprendi a encarar o voluntariado não como coisa de pessoas boazinhas que se atravessam pelos outros mas sim como uma expressão da cidadania do civismo e da participação. Depois de um interregno dedicado às causas políticas decidi ir para os Açores desta vez fazendo um outro tipo de voluntariado, desenvolver uma ideia do P. Paulo Teia (jesuíta)a pôr em prática o projecto «Rabo de Peixe sabe sonhar», que tem a sua expressão mais visível numa colónia de férias em que participam 200 crianças, mas que implica um trabalho impressionante, durante todo o ano, de proximidade, de apoio concreto de humanização profunda de uma comunidade profundamente desumanizada. Havia crianças em Rabo de Peixe sem refeições regulares, desconhecendo o que são talheres ou uma escova de dentes e, que por negligência dos pais, não vão à escola nem usufruem dos cuidados médicos mais elementares. Foi dos projectos que me deu mais gozo em toda a minha vida e que abandonei mais uma vez por causa do Senado da Universidade, mantendo só o projecto do Centro Educatvo dos Olivais onde era catequista a pedido de jovens reclcusos queriam fazer a Profissão de Fé e o Crisma uma experiência que mais uma vez alterou a minha percepção e me levou a nunca mais fazer julgamentos fáceis e gratuitos. Com Lisboa e o início de um projecto empresarial (que não correu bem) afastei-me do voluntariado estando só agora de volta e este é um projecto diferente de todos os outros que concerteza me vai acrescentar e mudar, tal como todos os outros. Este é um projecto desenvolvido na Paróquia de Santa Isabel, que consiste em oferecer uma ceia composta por sopa, prato, fruta e café ou chá. Abrirá as portas para acolher todos a seguir à Missa das 19h30 e fechará às 22 horas. A ceia é gratuita funcionando com voluntários que ficarão distribuídos por tarefas várias como seja a recolha de géneros pelas mercearias da zona, a confecção da comida, o serviço das mesas, o tirar cafés, a limpeza, a arrumação da Sala Alberto Lourenço. Esta refeição não se destina a niguém em concreto, mas a todos que por um outro motivo possam em dada altura não ter outra forma de comer uma refeição.
Comecei agora com o sentido que deveria ter começado há mais tempo, mas acho que vai correr muito bem.

Inês

Vou lendo na blogosfera e imprensa as reacções ao facto da Inês de Medeiros ter prescindido das ajudas de deslocação a Paris e os argumentos dos seus detractores e dos seus acólitos continuam os mesmos. Os detractores vociferam que em tempo de crise a atitude da deputada é indefensável e os seus acólitos chamam "burros" aos detractores reclamando por igualdade (coisa que não vejo a fazer a muitos em relação a disparidades salariais preferindo nesse sector a liberdade) quase nunca cândida e infantil atitude.
Detractores, acólitos e a Inês de Medeiros deram mais uma achega à desconfiança dos portugueses face à política, neste retrato de um portugal em que a esquerda "wanna be" se insurge e ofende enquanto o partido pelo qual a deputada foi eleita assobia para o lado não se querendo comprometer e os abutres da direita tentando diabolizar a comovente ingenuidade da Maria de Medeiros.
Para mim o caso é simples não existia alternativa se não o pagamento das viagens à Maria dado que o regimento não previa este tipo de situações, espera-se que no futuro se consiga prevenir, e quem como eu defende a igualdade deve defendê-la sempre por mais que custe.

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Muitas foram as razões da minha ausência aqui neste espaço a mais banal foi mesmo a falta tempo pois entre o trabalho e o voluntariado de repente vi-me a olhar para a ampulheta com alguma preocupação. Agora estabilizadas as aventuras e pontos de (des)interesse e focado no importante estou de volta à escrita. E sabe bem. É inacreditável a afeição que criamos em relação a espaços e lugares que não existem (físicamente) como este blog.

domingo, 2 de maio de 2010

Chanson du jour